Apocalipse motorizado: livro questiona a tirania do automóvel em um planeta poluído
São
Paulo, junho de 2.008 - O problema "carro" é o alvo
do livro
Apocalipse Motorizado
cujo subtítulo é "A Tirania do Automóvel em um
Planeta Poluído".
O
novo livro é organizado pelo mesmo Ned Ludd que
compilou a coletânea Urgência das Ruas, que reunia
textos dos grupos Black Bloc e Reclaim the Streets,
entre outros, e trata praticamente dos mesmos
assuntos (cidadania, ecologia, qualidade de vida,
espaço público, interesses de minorias, etc.) só que
usando o automóvel como ponto de partida. Ludd é o
pseudônimo do tradutor Leo Vinícius, que deu esta
entrevista a Alexandre Matias, íntegra abaixo.
Fale um pouco sobre
os movimentos anticarro que existem e existiram.
Pode se falar em uma espécie de “cânone” do
pensamento antiautomóvel?
Antes de mais nada, é preciso que fique claro que
não existe "movimento anticarro" num sentido
restrito da expressão, que seria conseqüente de uma
cisma contra o automóvel e que visasse pura e
unicamente aboli-lo.
O que existe são diferentes movimentos, movidos por uma série de valores, que questionam na teoria e na prática o uso de automóveis, a construção de estradas, etc., por perceberem que eles destroem o ambiente, matam pessoas em quantidade, roubam espaço público, tornam a cidade e a vida cotidiana mais e mais insuportáveis, criam e amplificam desigualdades sociais...
Por desenvolverem alguma prática que se contraponha
visivelmente ao absolutismo dos automóveis e à
expansão do seu uso, são muitas vezes enquadrados
como “movimento anticarro”. Muitos desses movimentos
são considerados também como movimentos ecologistas,
anarquistas ou anticapitalistas, e com razão não
ficariam muito felizes por serem rotulados como “anticarro”.
Muitas vezes, por uma simples questão de
comunicação, é-se forçado a enquadrar os movimentos
sociais numa lógica identitária, onde se opera
sempre uma redução mais ou menos violenta de sua
riqueza.
Dito isso, por vezes apontam um movimento "urbano-conservacionista"
dos anos 1950 nos EUA como sendo o primeiro a
contestar publicamente o urbanismo moldado em função
do automóvel, assim como seu impacto estético e
ecológico.
O movimento Provos, na Holanda, dos anos 60, também
não pode deixar de ser citado - confira o excelente
livro sobre ele da coleção Baderna. Provos foi um
movimento de forte influência anarquista,
precursores de muitas “bandeiras” e características
de movimentos posteriores, que contestou o automóvel
de forma ácida e inteligente. Podem ser considerados
pioneiros no que diz respeito a isso.
Não por acaso a “bicicleta branca” virou uma espécie
de símbolo do Provos. Bicicletas essas que eles
pintavam e espalhavam pela cidade para uso público.
O que era um plano de loucos nos anos 60 virou
política pública três décadas depois em algumas
cidades européias, como Rochelle na França, Aveiro
em Portugal e mais recentemente em Helsinque
(Finlândia), onde foram postas bicicletas para uso
público e gratuito em vários pontos da cidade.
Deve-se destacar as várias associações de usuários
de bicicleta que surgiram a partir dos anos 70 na
América do Norte - mas não somente lá -, que
promoveram também um questionamento da "cultura do
automóvel". Nos anos 90 a Inglaterra foi palco de um
vigoroso movimento de ação direta contra a
construção de estradas e pela retomada das ruas -
privatizadas pelo automóvel. Dois dos artigos
contidos no Apocalipse Motorizado são parte dessa
cena inglesa.
Não sei se é possível falar em pensamento
antiautomóvel, quanto mais em "cânone" de tal
pensamento. Existe o pensamento que se levanta
contra problemas da vida cotidiana e da
sobrevivência, relacionando-os à totalidade de
relações sociais, de técnicas e tecnologias.
Ele é sempre um pensamento de crítica social, antes
de ser um pensamento "antiautomóvel". Se ele
contesta e se insurge contra alguma tecnologia é
porque as tecnologias não são neutras, nelas há
valores e significações intrínsecas, e que portanto
jogam a favor ou contra determinados valores ou
racionalidades.
É por isso que, para mim, hoje, os principais
"movimentos anticarro", se assim se pode dizer,
estão no chamado Terceiro Mundo. São movimentos de
povos originários, por exemplo. Nesse sentido os
zapatistas são proeminentes - não canônicos.
E não apenas por terem rejeitado e ridicularizado a
"oferta" de "fusca, televisão e mercearia" com a
qual o presidente mexicano Vicente Fox sugeria
resolver o problema indígena, mas principalmente
pelas significações de tempo, de terra, entre
outras, – que formam a cultura que eles lutam por
manter – serem por si só antagônicas às
significações intrínsecas ao automóvel, aos valores
que andam com ele e com sua difusão.
Quando este tipo de
questionamento começa a surgir na sociedade? Há
algum marco zero da luta contra, não apenas a
industria automobilistica ou do petróleo, carro?
No meu entender, e até onde vai meu conhecimento,
não há um fato que possa ser considerado um marco
zero de contestação ao automóvel. Pode-se dizer que
a contestação ocorre mais ou menos na própria medida
que sua difusão cria situações contra as quais parte
da sociedade se insurge. Infelizmente não houve uma
previsão, com penetração social, das conseqüências
sociais e ambientais decorrentes do uso e difusão do
automóvel como, por exemplo, existe hoje em relação
aos transgênicos.
Você acredita no
iminente colapso deste sistema ou acredita que,
pouco a pouco, as pessoas podem conscientizar-se do
problema antes da "rede travar"?
Devemos nos perguntar se o que você chama de rede -
a circulação de veículos motorizados - já não está
travada. Se se considera que o trânsito de
automóveis em São Paulo não está travado, a partir
de que ponto pode-se considerá-lo travado?
De qualquer modo, a questão não é evitar a "rede
travar" ou destravá-la. Ora, isso já é o que
historicamente os governos têm feito, construindo
mais vias e infraestruturas para os automóveis,
ampliando assim os problemas gerados pelo automóvel
para que por um período de tempo a rede não trave ou
não fique travada.
De minha parte, dentro da própria tônica do livro,
melhor seria se o trânsito de automóveis travasse de
vez e permanecesse assim. Com os carros parados o
pedestre pode atravessar as pistas mais seguramente,
a qualquer momento e lugar - tendo cuidado ainda com
as motos.
Quem sabe as crianças poderiam voltar a brincar nas
ruas, fazendo um esconde-esconde entre os carros.
Parados os carros já são um incômodo, mas certamente
são piores se movendo. E à baixa velocidade são
menos assassinos. E em geral o ciclista anda com
mais segurança quando o trânsito de automóveis está
engarrafado. Ivan Illich, no artigo Energia e
Eqüidade, demonstra como a existência de veículos
que circulam acima de 25 km/h faz com que o tempo
social dedicado à circulação aumente - entre outros
efeitos socialmente nocivos -, ao contrário do que
supõe o senso comum e a cabeça de governantes e
engenheiros. Enfim, o problema de circulação de
pessoas não consiste no trânsito de automóveis
travar, mas no próprio carro.
Como a pessoa comum
pode contribuir para o fim deste sistema?
Claro que uma resposta como "ande menos ou não ande
de carro" parece ser a melhor contribuição, mas você
tem de considerar os vícios criados pelo sistema -
desde o comodismo do automóvel ao sucateamento do
transporte público e passando pelo conforto
individual e o glamour da velocidade.
Talvez não seja enquanto pessoa comum, se isso
significar o indivíduo isolado que forma a multidão
que habita as cidades, que alguém contribuirá para
alguma mudança. Só coletivamente se consegue alguma
coisa. Toda a história das conquistas e
transformações sociais demonstra isso. Além do mais
deve-se evitar extrapolar a "pessoa comum" de classe
média para toda sociedade. Nas favelas e em muitos
bairros de periferia a "pessoa comum" não tem carro,
essas estão sempre na posição do atropelado, e nunca
na de atropelador, por exemplo. E o que elas fariam
coletivamente nesse sentido talvez fosse
substancialmente diferente.
Como André Gorz ressalta, o absolutismo do automóvel
é especialmente cruel porque ele transformou o
próprio automóvel em uma necessidade, uma vez que o
espaço urbano é moldado por ele e projetado para
ele. Como fica claro ao ler o Apocalipse Motorizado,
não se pode tratar as questões de urbanismo, da vida
cotidiana, ecológicas, tecnológicas e econômicas
separadamente.
Existe uma frase de Mr. Social Control que talvez
resuma bem o espírito e uma conclusão geral do
livro: "não há nada de revolucionário em relação a
algo tão racional como a abolição do carro, embora
possa ter que haver uma revolução para liquidar os
interesses multinacionalmente investidos que impedem
que tal racionalidade seja alcançada". E não é
preciso ter carteirinha de subversivo para se
convencer disso.
Fale do movimento
anticarro no Brasil - das dificuldades - como a
ausência de malha ferroviaria - às iniciativas.
Como expliquei anteriormente, "movimento anticarro"
é um rótulo complicado. Não sei se ele existe no
Brasil, e, em certo sentido, não sei se é desejável
que exista. Certamente o que é desejável é que
movimentos sociais que visam uma transformação
social radical incorporem a crítica a tecnologias e
ao automóvel, e que movimentos que surgiram e que
surjam como conseqüência de problemas pontuais
diretamente ligados ao automóvel incorporem por sua
vez uma crítica social global, por perceberem que só
uma transformação mais ampla pode pôr fim a esses
problemas. Bem, de qualquer forma, existem algumas
associações de ciclousuários, além das Bicicletadas
que ocorrem em algumas cidades brasileiras que
questionam de alguma forma a “cultura do automóvel”.
Em São Paulo as bicicletadas ocorrem no último
sábado de cada mês, saindo às 10:00h da esquina da
Consolação com a Paulista. Elas também ocorrem em
Floirianópolis - agora na última sexta-feira de cada
mês -, Porto Alegre, Rio de Janeiro entre outras
cidades. Para saber como é e o que é exatamente a
bicicletada acesse o site
www.bicicletada.org .
Por que usar o
pseudônimo Ned Ludd?
Para responder a essa pergunta preciso explicar
primeiramente quem foi Ned Ludd, ou melhor, quem não
foi Ned Ludd. Ele foi um não-líder, um não-general e
uma não-persona. Ele não existiu como pessoa, ao
menos não se tem nenhuma evidência de que tenha
existido como tal. Ned Ludd foi muito provavelmente
um múltiplo, tataravô de Luther Blissett. O
movimento que o criou como personagem mítico, ponto
de consciência coletivo, acabou ficando conhecido
com referência a seu nome: os ludditas. Ned Ludd não
significa um indivíduo, mas muitos, que formam uma
coletividade.
Um livro, como de alguma forma tudo, é uma obra
coletiva. Várias pessoas trabalharam diretamente
nele - além daquelas que assinam os textos. Foi um
trabalho coletivo, no qual outras pessoas
participaram ativamente com sugestões de conteúdo,
do título e na seleção dos geniais cartoons de Andy
Singer que ilustram o livro, por exemplo.
Outro motivo é resgatar e difundir a história do
movimento luddita. Usar o nome Ned Ludd serve como
isca para tanto. Para ser minimamente conseqüente
com o que digo, escrevo, acredito e desejo, nada
mais natural do que tentar trocar a curiosidade que
possa surgir pela minha vida pessoal pela
curiosidade pela história social e dos movimentos
revolucionários. O movimento luddita foi um
movimento de massa de trabalhadores que surgiu na
Inglaterra durante a Revolução Industrial. Só foi
derrotado por um contingente militar maior que o
enviado para lutar contra as tropas de Napoleão.
Ficaram conhecidos historicamente por uma dentre
outras ações que praticavam: quebrar e incendiar
fábricas e suas maquinarias. Percebiam eles que as
técnicas e tecnologias não eram neutras, encarnavam
valores e processos que estavam os destituindo de
seu modo de vida e sua autonomia. Para os lucros dos
burgueses a fábrica era um progresso, mas certamente
não para os trabalhadores que perdiam assim sua
autonomia.
Fonte: Alexandre Matias, da Folha de São Paulo.
Endereço para aquisição:
www.editoraconrad.com.br